Vendido livremente em web pages, o medicamento não tem qualquer controle e pesquisas mostram que pode causar problemas cardÃÂacos
RAFAEL CISCATI
03/07/2018 - 11h00 - Atualizado 03/07/2018 12h11
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O fisiculturista e youtuber Fernando Maradona, que já usou SARMs. “Bodybuilder é como rato de laboratórioâ€Â, disse (Foto: DIVULGAÇÃO)
O fisiculturista e youtuber Fernando Maradona, que já usou SARMs. “Bodybuilder é como rato de laboratórioâ€Â, disse (Foto: DIVULGAÇÃO)
O frasquinho chegara pelo correio, embrulhado em uma caixa de papelão. Tinha um rótulo pouco convidativo: “Impróprio para consumo humanoâ€Â, dizia em inglês. Lucas Cabral, de 30 anos, 1,74 metro e bÃÂceps de forty four centÃÂmetros, contou que não se importou com a advertência. Passava pouco das seven da manhã quando pressionou o conta-gotas e sugou ten milÃÂmetros do lÃÂquido transparente. Aquela era a medida suitable, segundo lera em um fórum na World wide web, para obter os melhores efeitos do LGD-4033  ou Ligandrol â€â€, um tipo novo de anabolizante que Cabral descobrira. As gotas foram despejadas sobre a lÃÂngua. Não tinham gosto. Cabral tomou o café da manhã e foi trabalhar.
Cabelo cortado rente, ombros largos e uma tatuagem tribal que lhe desce pelo lado direito do dorso, Lucas Cabral exibe, com orgulho, o corpo esperado de um rato de academia. É, aliás, como se determine. Treina, religiosamente, de segunda a sábado, sempre no mesmo horário. O desejo de ter o corpo trincado surgiu há cerca de três anos, quando Cabral decidiu que devia parar de fumar e eliminar a barriga de chope. “Vi meu corpo secarâ€Â, disse, animado. “Minha saúde melhorou, e minha autoestima também.â€Â
Mas, no ultimate de 2017, a transformação obtida na academia pareceu estagnar. Cabral já não emagrecia com a mesma facilidade, nem seus músculos cresciam no mesmo ritmo. Foi quando descobriu o Ligandrol num fórum de exploreão. O composto prometia ganho muscular sem efeitos colaterais e  dado importante  dispensava o uso de agulhas. Bastavam algumas gotinhas insÃÂpidas tomadas antes do treino.
Cabral usou o Ligandrol por forty nine dias, duas vezes ao dia: de manhã, pouco antes do café, e ànoite, antes do treino. Os resultados vieram aos poucos: o volume muscular cresceu, a gordura corporal diminuiu. Mais importante que isso, a estética melhorou. “Deu para notar as pessoas na academia me olhando de um jeito diferenteâ€Â, disse, satisfeito. “Eu não queria usar um anabolizante tradicional. E o Ligandrol me pareceu um bom ponto de partida.â€Â
O LGD-4033 é mais uma “bombaâ€Â, como outras usadas por frequentadores de academias. Desenvolvidas a partir de meados da década de 1990, receberam o complicado tÃÂtulo de “moduladores seletivos do receptor de androgênioâ€Â. Ou, para facilitar, SARMs, da sigla em inglês. O Ligandrol é um entre mais de uma dezena de SARMs, uma resposta da indústria farmacêutica aos dissabores causados pelos esteroides anabolizantes tradicionais. A maioria dos anabolizantes tenta imitar o funcionamento da testosterona, o hormônio sexual masculino. Uma vez injetados nos músculos, conectam-se a estruturas no interior das células e dão a partida numa sequência de reações que culminam na produção de proteÃÂna. São usados para tratar pacientes que perdem massa óssea e muscular.
Mas o uso prolongado de anabolizantes  mesmo com acompanhamento médico  pode provocar câncer de próstata ou problemas de fÃÂgado. Nas mulheres, provoca o surgimento de caracterÃÂsticas masculinas, como pelos na face ou engrossamento da voz. Um pacote de alterações que a ciência chama de "efeitos androgênicos". Os SARMs têm a vantagem de se conectarem somente aos receptores dos músculos esqueléticos. “Em teoria, isso deveria permitir que eles estimulassem a sÃÂntese de proteÃÂna sem provocar os mesmos efeitos colateraisâ€Â, disse o professor Alexandre Hohl, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia. O primeiro membro desse novo grupo foi descoberto quase por acidente, por uma equipe de cientistas da Universidade do Tennessee, nos Estados Unidos. Na época, o professor James Dalton estudava uma substância que promovia o aumento dos músculos em ratinhos: “Foi quando percebemos que nosso composto não vinha acompanhado por efeitos androgênicosâ€Â, disse Dalton a ÉPOCA. “Para nós, foi uma grata surpresa.â€Â
A novidade deu a largada numa corrida pelo desenvolvimento de novas substâncias com caracterÃÂsticas similares. Gigantes do setor farmacêutico, como Johnson & Johnson e Merck, criaram seus próprios SARMs. As pesquisas pareciam muito promissoras: “Mas a primeira geração desses compostos desapontouâ€Â, disse Hohl. No ano passado, a Meals and Drug Administration (FDA)  a agência americana que se encarrega de avaliar a segurança e eficiência de novas drogas  publicou um relatório atestando que os SARMs estudados até ali podiam provocar problemas hepáticos e cardiovasculares, aumentando o risco de ataques cardÃÂacos. “Period um sinal de que precisavam de mais anos de desenvolvimentoâ€Â, disse Hohl.
Entretanto, como sempre, algo saiu do controle. Atletas profissionais começaram a usar os SARMs, tanto que em 2008 a Agência Mundial Antidoping (Wada, na sigla em inglês) os colocou entre as substâncias proscritas. Mas uma droga que aumenta músculos só podia cair nas graças daqueles que são ávidos por isso e topam experimentalismos: os fisiculturistas.
Num vÃÂdeo postado em março deste ano, o fisiculturista Fernando Maradona fez o anúncio entusiasmado. “Hoje, estamos aqui para falar sobre um suplemento que está invadindo o meio do bodybuildingâ€Â, disse, encarando a câmera com o dedo em riste. “Isso aÃÂ: SARMs.†Nas redes sociais, os fileãs chamavam Maradona pelo manjado apelido de “Hulk brasileiroâ€Â: os músculos retesados já lhe renderam tÃÂtulos importantes em competições no Brasil e no exterior e boas colocações no Mr. Olympia  uma das principais competições do meio. “O bodybuilder é como um ratinho de laboratórioâ€Â, disse Maradona. “Ele testa toda substância nova que promete melhorar seu desempenho.†Fisiculturista há twenty anos, há três Maradona virou também youtuber. Seus vÃÂdeos documentam, é claro, sua rotina de treino, dão dicas de dieta e exercÃÂcios e fazem a crônica do que há de novo no “meio bodybuildingâ€Â.
Em 2010, Maradona participava de uma competição nos EUA quando ouviu falar sams comprar nos SARMs pela primeira vez. Um amigo, dono de uma loja de suplementos, decidiu presenteá-lo com o composto novo: “Mas, na época, não levei a sério. Achei que fosse papo de vendedorâ€Â. A droga ficou esquecida em alguma prateleira. Cerca de três anos depois, durante uma viagem a Las Vegas, o amigo refez a oferta. Dessa vez, Maradona deu uma likelihood àsubstância. “Eu me surpreendiâ€Â, disse. “Melhorou minha effectiveness, resistência e capacidade de recuperação.â€Â
Cinco anos depois, Maradona viu o interesse pelos SARMs explodir para além do meio competitivo. Foi quando decidiu gravar vÃÂdeos sobre o assunto. Afirmou que sua intenção não period estimular a procura pelos compostos, apenas tirar dúvidas sobre um tema que seus fãs já discutiam. “O que acontece é que todo mundo quer ter os mesmos resultados que um fisiculturistaâ€Â, teorizou. Para ele, o interesse por anabolizantes varia como a moda. “Toda vez que a ciência aparece com algo novo, há um growth. Hoje, o growth é dos SARMs.â€Â
Vendidos livremente em websites e comentados em vÃÂdeos on-line, os SARMs são medicamentos sem qualquer controle. As pesquisas mostram que podem causar problemas cardÃÂacos
O own trainer MaurÃÂcio Medeiros tem 36 anos, cabelos curtos e pele levemente bronzeada. Na Net, ganhou notoriedade ao integrar o elenco do Fábrica de Monstros  um canal no YouTube (bastante) satÃÂrico, por vezes sério, criado pelo marombeiro profissional Leo Stronda. A atração tem mais de two milhões de inscritos. Medeiros terminara de dar uma aula quando recebeu uma mensagem pelo WhatsApp: “Olha só. Esse é o SARM da modaâ€Â, disse, entregando o celular àreportagem. Troncudo, sério, sentava-se empertigado na poltrona. Na foto, havia um frasco com um rótulo azul, no qual fora impressa uma cadeia de carbonos. “A promessa é que a pessoa perca thirty quilos ao mês. Imagine o risco.â€Â
Imerso nesse universo de anilhas, halteres, barras e suplementos alimentares, Medeiros vive atento ao inevitável burburinho que acompanha o surgimento de um novo anabolizante. “Há sempre alguém que conhece alguém que usaâ€Â, disse. Por seus cálculos, o bochicho sobre os SARMs chegou às academias  já além do meio dos fisiculturistas  há cerca de três anos e ganhou vigor nos últimos twelve meses. A percepção é confirmada por estatÃÂsticas do Google. A procura pelo termo “melhor SARM†cresceu cerca de 5.000% no último ano no Brasil.
O frequentador de academia que procura SARMs, mesmo sem intenção de competir, o faz por vaidade. “Aquele menino magro, que as garotas nunca notaram, arriveça a ganhar corpoâ€Â, disse Medeiros. “E isso vicia. Resultado vicia.†A propagação do assunto é explosiva. Essa nova vaga de anabolizantes tem um instrumento que faltava às anteriores: as redes sociais. “Costumo sarms relato dizer que a Net foi como uma bomba de Hiroshima para os anabolizantesâ€Â, disse Medeiros. “Hoje, se quiser comprar isso aqui† disse, apontando para o frasco na foto do celular â€â€, “basta passar meia hora no Google.â€Â
Lucas Cabral, forty four centÃÂmetros de bÃÂceps. Em busca do corpo trincado, ele usou um anabolizante sem controle (Foto: MARCOS ALVES/AGÊNCIA O GLOBO)
Lucas Cabral, forty four centÃÂmetros de bÃÂceps. Em busca do corpo trincado, ele usou um anabolizante sem controle (Foto: MARCOS ALVES/AGÊNCIA O GLOBO)
No YouTube há canais especializados nos SARMs. Alguns usuários narram suas experiências com os anabolizantes por semanas a fio  sob o olhar atento de uma audiência que comenta e pede dicas. Quem os vê quer saber qual SARM usar para conquistar o corpo suitable, qual a dosagem mais adequada e qual a duração do ciclo  no jargão do setor, o tempo de uso da droga. São todas questões para as quais a ciência ainda não tem resposta. Mas para as quais os internautas juram ter uma saÃÂda. “Meu cabelo começou a cair demais, toda vez que passava os dedos por eleâ€Â, disse um rapaz, antes de apontar a solução. “Acho que a questão period a dosagem. DiminuÃÂ.â€Â
A empreitada do gaúcho Renan Duarte com os SARMs arriveçou no closing de janeiro deste ano. “Oi, galera do YouTube. Hoje, inicio meu cicloâ€Â, anunciou num vÃÂdeo do dia 27 daquele mês  óculos escuros no rosto, franja jogada de lado. Seu “Projeto SARMs†durou 90 dias e 120 cápsulas de uma substância chamada S23. Os vÃÂdeos foram gravados no quarto, com a câmera parada e com Duarte devidamente descamisado. “Eu quis fazer os vÃÂdeos para auxiliar quem pretendia comprar. Para essas pessoas terem algo verdadeiro em que acreditarâ€Â, disse. Foram 11 vÃÂdeos, um por semana. O último guardava um desapontamento. “A promessa dos laboratórios period puro promotingâ€Â, contou Duarte. “O produto que usei não cumpriu nada do que prometeu.â€Â
A procedência duvidosa dos SARMs representa um risco adicional. Como não há controle por qualquer agência governamental, é impossÃÂvel garantir o conteúdo do frasco  e quais seus efeitos sobre o corpo. Um estudo publicado em novembro do ano passado, conduzido por uma equipe da Universidade Harvard, pôs àprova forty four produtos vendidos on-line como SARMs. A maioria falhou: somente 23 tinham, de fato, um SARM em sua composição. Outros 17 continham substâncias ilegais na mistura  incluindo aàum composto tóxico, cujo desenvolvimento foi abandonado pela indústria farmacêutica há mais de dez anos, por provocar câncer em animais. Os outros quatro não apresentavam qualquer ingrediente ativo  não eram melhores que farinha. “Estamos falando de remédios. É como se eu vendesse uma droga controlada, como o Diazepam, livremente pela Net e ninguém fizesse nadaâ€Â, disse Hohl, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia. Enquanto isso, milhares se arriscam por um corpo trincado, ao alcance de alguns cliques. “Ainda não sabemos se essas substâncias são segurasâ€Â, disse James Dalton. “A verdade é que quem as usa se expõe a riscos muito grandes.â€Â